Flávio Citro - Direito Eletrônico

PORTUGAL – “JUSTIÇA DEVIA PROTEGER MAIS O CONSUMIDOR” – ENTREVISTA COM O CONSELHEIRO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NORONHA DO NASCIMENTO

noronhanascimentoNuma análise global à situação da Justiça, Noronha do Nascimento diz que é necessário defender os consumidores da agressividade comercial das empresas.

A Justiça foi sujeita a uma “massificação monumental” desde o 25 de Abril. Quer no caso dos seguros dos acidentes de viação, quer nos créditos e dívidas de consumo – grande parte do problema -, a Justiça depara-se entre duas barricadas: de um lado estão as empresas, do outro os consumidores. E, para Noronha do Nascimento, estes últimos são o elo mais fraco, que cumpre proteger mais e melhor. Proteger da publicidade enganosa e dos contratos abusivos, que, no fundo, redundam em incumprimentos massivos e, mais tarde, no entupimento dos tribunais. No fundo, a morosidade resulta, sobretudo, da economia.

Bruno Simões, entrevista a Noronha do Nascimento.noronhanascimento2

http://www.jornaldenegocios.pt/index.php?template=SHOWNEWS&id=431133

ouça o audio:

http://www.jornaldenegocios.pt/index.php?template=SHOWNEWS&id=431313

Entrevista – Noronha do Nascimento, PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

“Justiça devia proteger mais o consumidor”

Numa análise global à situação da Justiça, Noronha do Nascimento diz que é necessário defender os consumidores da agressividade comercial das empresas

BRUNO SIMÕES

A Justiça foi sujeita a uma “massificação monumental” desde o 25 de Abril. Tanto no caso dos seguros dos acidentes de viação, como nos créditos e dívidas de consumo – grande parte do problema -, a Justiça depara-se entre duas barricadas: de um lado estão as empresas, do outro os consumidores.

E, para Noronha do Nascimento, estes últimos são o elo mais fraco, que cumpre proteger mais e melhor. Proteger da publicidade enganosa e dos contratos abusivos, que, no fundo, redundam em incumprimentos massivos e, mais tarde, no entupimento dos tribunais. No fundo, a morosidade resulta, sobretudo, da economia.

- A Justiça está hoje melhor do que estava há 35 anos?

- Não diria que está melhor nem pior; diria antes que está muito diferente. O 25 de Abril alterou completamente a concepção da Justiça. Antes disso, os tribunais limitavamse a julgar [Direito] cível, crime e comercial. Mais nada. O sistema tirava dos tribunais uma série de questões que o sistema judiciário não julgava, como forma de evitar conflitos. O Ministério Público ganhou autonomia para fazer a investigação; bem ou mal, ganhou-a. Criouse o Conselho Superior da Magistratura (CSM) com a composição democrática que tem hoje. Isso significa que o sistema mudou em termos de democraticidade. Em termos de abrangência e de independência mudou completamente.

- O que piorou neste período?

- Quando fui juiz no Tribunal Cível do Porto, há 31 anos, cada juízo tinha três secções, e cada uma tinha 700, 800 processos. Há 10 anos, cada uma delas já tinha dois mil, três mil. Houve uma massificação monumental. Tivemos, ao longo do século XX, três grandes ciclos que marcaram os tribunais. Primeiro: cheques sem cobertura, nos anos 1960. Depois vieram os acidentes de viação, com efeitos no Direito Criminal e, principalmente, nas indemnizações cíveis e seguradoras. Já depois do 25 de Abril, o “boom” é nas acções de dívida, típicas de uma sociedade de consumo, em que se pode duvidar, e eu duvido, se a figura do consumidor está ou não bem protegida perante a lei. Essa situação leva ao endividamento familiar. Por consequência, há bancos na Europa que pedem dinheiro emprestado a bancos estrangeiros e cria-se uma cadeia interbancária de débitos recíprocos que origina efeitos muito complicados a prazo, e que estamos, de certa maneira, a pagar agora. O que acontece na sociedade reflecte-se nos tribunais.

- Acha então que a figura do consumidor devia ser mais bem protegida na Lei portuguesa?

- Acho que sim. Estabelecendo formas de defesa quer na lei, quer na fiscalização. Há casos flagrantes de publicidade que são quase paralelos a publicidade enganosa. É dos países do Norte [da Europa] que vêm as grandes inovações para a defesa dos consumidores, e onde se declara a nulidade de procedimentos como contratos com etra tão pequenina que nem se consegue ler o que lá está escrito, ou cláusulas que aparecem depois da assinatura.

- Pinto Monteiro disse que Portugal não é um país de corruptos. O combate faz-se através da criação de mais leis?

- Penso que não. Passa por uma investigação bem feita, pelo acesso aos sistemas bancários, pelo fim dos paraísos fiscais… Todo o mundo fala em transparência, mas ninguém quer aceder aos sistemas bancários. A Europa está cheia de paraísos fiscais. O problema da transparência não se compadece de mais leis.

- Algumas personalidades têm falado de uma politização da Justiça. Até que ponto é que isso acontece?

- Quando se julgam pessoas que exercem funções políticas, actos do Estado, constituição das leis… há uma politização da Justiça. Conhece Direito mais político que o Constitucional? É a estrutura dos estados e toda a estrutura política da sociedade que está em causa! Quando os tribunais administrativos podem apreciar a legalidade de actos do Estado, e quando os criminais julgam pessoas que exerceram (e exercem) funções políticas, a tendência é, depois, dizer-se que se está a politizar a Justiça. Antigamente não se politizava, não se pedia contas… e a ideia de politização resulta de pedir contas. E não sei se não haverá uma excessiva criminalização de condutas relativamente a quem exerce funções públicas, como autarcas.

- Também há quem fale de corporativismo no sector. Como vê essas considerações?

- Todas as associações sindicais são corporativas. Todas! Algumas que não são sindicais também o são! As Ordens dos Advogados, Médicos, etc, não são associações sindicais. E não são corporativas? A composição das ordens não pode ser esta, a ordem é um organismo estatal. Um organismo de Direito Público não pode ser composto só por pessoas da profissão. O Estado tem de saber como se exercem as funções. Há profissões sociais relevantes que têm de ter entidades reguladoras. O CSM, no fundo, é uma entidade reguladora, composta por metade juizes, metade não juízes. E porque é que as ordens não são assim? Metade profissionais do sector, metade não. Os advogados, por exemplo, não querem, nem os médicos. Tenho advogados e médicos na família, e era o que faltava! Eu bem sei.

- O que obsta a uma maior agilização da Justiça?

- A morosidade tem muitas causas. Há tribunais que funcionam depressa – os tribunais superiores. Os tribunais do Interior também decidem depressa, excepto os tribunais de ingresso, que são os piores. Até no Litoral (Lisboa e Porto) há tribunais que julgam o grande crime e o grande cível com muita rapidez. O que funciona mais lentamente é o pequeno crime, o pequeno cível do litoral. Temos sete, oito milhões de habitantes no litoral; pensa que isso não tem influência no funcionamento dos tribunais?

- Mas é possível melhorar?

- É, é possível, mas não é com uma medida. É necessário um conjunto de medidas complementares uma das outras. Os tribunais de Família vão ter cada vez mais problemas, e digo com toda a sinceridade: nunca quereria ser juiz num tribunal desses. Dos tribunais de execução não falo, nem vale a pena, porque toda a gente sabe que a execução faliu. Os tribunais de comércio também funcionam muito mal: verdadeiramente, são tribunais de execução.

- Quais são as medidas complementares que fazem mais falta?

- São tantas… Grande parte das acções de dívida, que têm a ver com a concessão de crédito ao consumo, não deviam ir ao tribunal. Na nova comarca de Sintra, não funcionava o cível. No novo modelo começou a funcionar, mas as execuções não… Diz-se que a economia funciona mal porque os tribunais funcionam mal. Eu acho o contrário. A crise dos tribunais resultou da crise da economia, é uma consequência.

- Considera que tem havido uma descredibilização da Justiça em Portugal?

- Tem havido uma descredibilização de todos os sectores de actividade. É muito típico dos povos do Sul da Europa. Diz-se mal da Justiça, disto, daquilo…

- Isso quer dizer que não há razão especial para a Justiça sair descredibilizada?

- Há razões. Costuma-se falar numa Europa a duas velocidades. Em Portugal há uma justiça a duas velocidades. Os tribunais de recurso (Supremo e Relação) funcionam muito depressa Mas os tribunais da primeira instância funcionam muito mal.

- A causa desse mau funcionamento é o número de processos?

- É isso, por vezes é impreparação, por vezes é negligência… As causas são muitas. Há um princípio eterno: quando um tribunal tem pendências excessivas, é tão difícil saber quais são as causas que quase há uma desculpabilização geral. Se um tribunal tiver uma pendência tão grande, tão grande que mesmo que toda a gente trabalhe 24 horas por dia não dá vazão, há a partir deste momento um sistema de irresponsabilização de todos os agentes que trabalham no tribunal.

- Atinge-se um limite sem retorno?

- Quase. Sempre apoiei a reforma do mapa judiciário. O sistema antigo e a quantidade de comarcas que havia já não faziam sentido. Depois do 25 de Abril criaram-se imensas comarcas sem justificação nenhuma. E o que se passou na nova comarca do Baixo Vouga [uma das comarcas-piloto do novo mapa judiciário] é um escândalo. Os tribunais criminais de Aveiro, com a reformulação da comarca, ficaram com imensos processos. Os desgraçados dos funcionários trabalharam como loucos e precisavam de mais dois, ou três. Em Sever do Vouga, onde existe um tribunal com tão pouco que fazer que nem juiz próprio tem, havia sete ou oito funcionários que não faziam nada Tentou trazer-se dois ou três para Aveiro e todos se recusaram. Isto é inadmissível. Eu já falei nisto. As pessoas e os funcionários não gostam, mas o sistema de mobilidade tem de mudar. Há uma lei que diz que os funcionários só podem ser movimentados para um concelho ao lado. Isto é surrealista e tem efeitos enormes no funcionamento dos tribunais.

- O congelamento de admissões pode prejudicar o bom funcionamento das instituições da Justiça?

- Pode prejudicar, mas com as restrições orçamentais o que tem de se fazer é aproveitar os recursos que há para os racionalizar. Mas não se racionaliza se se mantém um tribunal como Sever do Vouga, que pura e simplesmente não devia existir. E como Sever há 15 ou 20. Ou mais.

- O problema que se coloca é de falta de recursos ou de recursos mal distribuídos?

- Começaria por ver se há recursos mal distribuídos, e depois ia ver se, ainda assim, faltam recursos. No país, naqueles 15 ou 20 tribunais, se cada um deles tiver cinco ou seis funcionários, já dá cento e tal funcionários que podiam ser redistribuídos. Claro que um funcionário de Trás-os-Montes, de um tribunal extinto, não tem obrigação de ir para Vila Real de Santo António, tendo a família toda sedentarizada lá em cima Mas há limites, há regras que se podem estabelecer. Não vejo como é que de Lisboa não podem ir para Sintra até porque a maior parte das pessoas não vive sequer em Lisboa. Durante a minha vida passei por muitas cidades, e até fiz o concurso na tropa Era assim a vida de um juiz.

Jornal Negócios | Terça Feira, 22 Junho 2010

http://www.asjp.pt/2010/06/22/ha-15-a-20-tribunais-que-nao-deveriam-existir/

Faça seu comentário.

Site publicado em 04/05/2009
www.flaviocitro.com.br - siteflaviocitro.com.br