Flávio Citro - Direito Eletrônico

Artigo Institucional – Por Um Código de Processo Coletivo pág. 34 – REVISTA FORUM DA AMAERJ – Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – Ano 8, número 27, out/nov/dez 2010.

A CRISE DA TUTELA INDIVIDUAL E A EFETIVIDADE DA TUTELA COLETIVA PARA JULGAMENTO DA DEMANDA DE MASSA

 

 

O Judiciário no Brasil promoveu verdadeira revolução no acesso e atendimento às demandas individuais nos últimos 10 anos, que tiveram crescimento exponencial, apresentando números inacreditáveis de processos novos ajuizados, especialmente nos Juizados Especiais que, no Rio de Janeiro, alcançaram até 2.000 processos novos distribuídos por mês, em cada Juizado no Foro Central.

 

O microssistema dos Juizados funciona bem, atrai os jurisdicionados e advogados que optam pela solução jurisdicional mais célere e esta explosão de demanda traduz equação perversa que conspira contra a eficiência do sistema.

 

O diagnóstico do perfil desses processos identifica uma artificialidade dessa demanda de massa, que concentra processos idênticos, com o mesmo objeto, em face das mesmas empresas, especialmente no segmento das relações de consumo, em que os fornecedores lesam no atacado e indenizam no varejo. O Judiciário falha na missão de prestar jurisdição célere porque possui capacidade limitada de atendimento e de infraestrutura para processar e julgar milhares de dissídios individuais com o mesmo objeto, em face da mesma empresa.

 

Os Estados, como o Rio de Janeiro, que desafiam essa espiral e garantem  amplo acesso dos consumidores à Justiça, tem 50% da demanda de todos os processos concentrada nos Juizados Especiais que, de regra, não recolhem custas, razão pela qual o contínuo e acelerado crescimento desse segmento especializado implica numa caótica desproporção no custeio do sistema que lembra a figura de Robin Hood, herói inglês que tirava dos ricos para dar aos pobres, porque utiliza recursos dos que pagam custas na justiça comum, para garantir a prestação jurisdicional dos Juizados, que só recolhem custas no recurso sem êxito, daqueles que não gozam de gratuidade (grande minoria).

 

O quadro perverso desafia a gestão judicial porque essa repetição de demandas judiciais em face das mesmas empresas exerce pressão sobre o microssistema dos Juizados que, de forma sintomática, reage de forma simplista ao excesso de processos, enquadrando como frívolas as ações redundantes da demanda de massa, banalizando a solução jurisdicional com extinções sem mérito e indenizações irrisórias inaptas para busca de pedagogia. Há uma crise importante no sistema de solução de conflitos individuais porque a justiça não pode conter demanda de forma artificial, com indenizações que desestimulam o exercício do direito de ação pelo jurisdicionado.

 

Estão errados aqueles míopes que têm idéia preconcebida de que demandas de pequeno significado econômico são frívolas e banalizam a intervenção judicial. Estão equivocados aqueles que acreditam no mito da “industrialização do dano moral”. Há, na verdade, uma acomodação incompreensível do segmento empresarial em relação ao absurdo volume de demanda de massa na área do consumidor e acumulo de passivo judicial pelas empresas. O papel do Judiciário no arbitramento da lide é o de fixar indenização pedagógica/punitiva que paute o comportamento do fornecedor para que não repita a conduta ilegítima, ilegal e abusiva. 

 

Há, em verdade, industrialização do dano.  Há uma acomodação do segmento empresarial em relação ao absurdo volume de demanda de massa repetida, na área do consumidor, a ponto de uma só empresa de telefonia fixa ter concentrado 20% de todos os processos que tramitavam no Estado do Rio de Janeiro.  E a pergunta que não quer  calar: está errado o Judiciário ao garantir este acesso aos consumidores, respondendo à explosão de demanda?  Ou está errado o Poder Concedente que se omite diante da grave equação imposta pelos fornecedores que “lesam no atacado e indenizam no varejo”?  O Judiciário está certo.  As agências do Executivo é que deveriam zelar pela melhoria do serviço, são as verdadeiras responsáveis pela explosão de demanda que assola o Judiciário, numa crise sem precedentes, que “abarrota” os Juizados e os Juízos comuns cíveis.

 

E por quê? Por que a demanda de massa que estava concentrada nos Juizados vem migrando para as varas cíveis porque os jurisdicionados e advogados estavam insatisfeitos com as indenizações irrisórias desprovidas de pedagogia.  A Justiça comum está abarrotada de casos menos complexos vocacionados para solução nos juizados e os Tribunais de Justiça se transformaram em Turmas Recursais porque reexaminam as mesmas questões, que antes eram julgadas nos juizados.

 

A solução da crise exige que sejam fomentadas melhores condições para a solução coletiva da demanda de massa através das Ações Civis Públicas que têm vocação para, em uma só ação, atingir milhares de consumidores, cujo direito individual homogêneo será solucionado, não pela reversão de eventual indenização para o Fundo de Reconstituição dos Bens Lesados, mas sim, pela fixação, na Ação Civil Pública que demande interesses individuais homogêneos, de uma indenização material e moral individualizada.  Na ação coletiva hoje, ainda que se conceda uma tutela antecipada em Ação Civil Pública para que o banco se abstenha de cobrar uma tarifa abusiva e indevida, nenhum argumento convence o jurisdicionado de que deve renunciar ao direito de demandar em dissídio individual o indébito em dobro e indenização por danos morais nos Juizados, porque  não podemos garantir que este consumidor terá a mesma efetividade se aguardar a solução da demanda coletiva, com o desdobramento de eventual habilitação individual, após o trânsito em julgado da ACP.

 

O art. 103 do CDC adota o sistema “opt out” e permite que o consumidor escolha o ajuizamento da demanda individual, em que o consumidor será indenizado material e moralmente em aproximadamente 6 meses.  Hoje, na ação coletiva, nenhuma promessa pode ser feita.  Há necessidade de que seja desmistificada a Ação Coletiva e que seja fomentada e priorizada a solução coletiva em relação aos dissídios individuais.

 

O TJRJ vem trilhando o caminho de monitoramento das demandas coletivas ao criar o Banco de Ações Civis Públicas que disponibiliza, na internet, consulta pública, por hipertexto, das ações civis públicas em matéria de consumidor, permitindo que os juízes, servidores, advogados, jurisdicionados, promotores, defensores, estudantes e acadêmicos pesquisem, por assunto, as Ações Civis Públicas, em trâmite, com acesso ao conteúdo da petição inicial, da tutela antecipada, da sentença, do acórdão e do andamento processual, tornando transparente o sistema de solução de conflitos coletivos e permitindo, inclusive, um controle de redundância, litispendência e coisa julgada, para detecção da repetição de ações com o mesmo objeto.

 

Mas o caminho é longo e há necessidade de aprovação de um Código de Processo Coletivo que estabeleça a coisa julgada com efeito “erga omnes” de âmbito nacional, com sistema efetivo de controle de litispendência e coisa julgada por um cadastro nacional de ações coletivas. 

 

A solução individual das demandas de massa não pode preponderar sobre a solução coletiva, sob pena de se eternizar a equação insolúvel de exponencial crescimento dos dissídios individuais que aponta para o caos na Administração Judiciária, especialmente porque as custas recolhidas sofrem decréscimo diante do aumento dos processos nos Juizados Especiais Cíveis que, de regra, não recolhem custas.  O conflito de massa que pode ser resolvido por uma só ação civil pública é hoje, resolvido por inúmeras ações individuais idênticas, em face da mesma empresa, “abarrotando” os tribunais. O desafio não é o de impedir que o consumidor ajuíze sua ação individual, e sim, o de tornar a Ação Civil Pública mais eficiente que as ações individuais.

 

O excesso de demanda encarado como “banalização da Justiça” traduz “denegação de Justiça”, com reflexo altamente nocivo sobre o Judiciário que atravessa uma crise de demanda, com repercussão negativa na imagem e na confiabilidade da Justiça.  A Associação dos Magistrados Brasileiros encomendou em 2008, uma pesquisa de opinião pública, que apontou que 88% dos entrevistados confiavam no sistema dos Juizados Especiais e hoje, apenas 2 anos depois, pesquisa semelhante indica que esse percentual caiu para 46%.

 

Se o jurisdicionado não acreditar na nossa capacidade de resolver os conflitos massificados, sofreremos um retrocesso de 30 anos, quando Dinamarco em 1980 registrou no livro “A Instrumentalidade do Processo”, que o lesado era ameaçado pelo causador da lesão: “vá procurar seus direitos na Justiça” e a experiência tem demonstrado que já existem vários casos que podem ser colhidos na internet, em vídeos do You Tube, onde consumidores denunciam a conduta abusiva dos fornecedores, lembrando o caso de um consumidor do Estado do Espírito Santo que transportou sua geladeira defeituosa até a porta do estabelecimento comercial, responsável pela venda, destruindo o produto, com uma marreta, “fazendo sua própria justiça”.

 

CONCLUSÃO – MEDIDAS DE GESTÃO

 

Criação de uma lista nacional de empresas com maior número de ações no Judiciário, sediada no CNJ, para que o fornecedor se preocupe com o reflexo negativo que o passivo judicial pode gerar na reputação do empreendedor, pressionando ainda as agências governamentais de serviços públicos concedidos a agirem em defesa do consumidor e melhoria na qualidade dos serviços públicos.

 

Organização, pelo Judiciário, de pautas temáticas, aglutinando processos idênticos, contra as mesmas empresas, reunindo elementos que permitam o encaminhamento de peças para os legitimados para ação coletiva, especialmente para o Ministério Público.

 

Criação de Bancos de Ações Civis Públicas Estaduais e um Banco Nacional sediado no CNJ para controle de prevenção e litispendência, evitando o desperdício de atividade jurisdicional na repetição de ações civis públicas com o mesmo objeto, para tornar transparente o sistema coletivo evitando a repetição de milhares de dissídios individuais idênticos com o mesmo objeto da Ação Civil Pública.

 

Pacificação da doutrina e jurisprudência acerca da coisa julgada “erga omnes” de âmbito nacional, nos termos do precedente contido no RESP.  no. 411.529 – SP da Ministra Fátima Nancy Andrighi. 

 

Rediscussão acerca do reconhecimento do dano moral e material coletivo, evitando processo de habilitação quando for possível, com a adoção da condenação mandamental para que, por exemplo, os réus depositem nas contas dos lesados o valor arbitrado no “standard” jurídico fixado na ação coletiva, como foi proposto no “Projeto Poupança” do Rio Grande do Sul, sob fiscalização de um administrador, sob pena de pesadas multas.

 

Incentivo para criação de Varas Empresariais e Câmaras dos Tribunais Especializadas no julgamento de Ações Coletivas.

 

Criação de um mecanismo de aferição da representatividade adequada pelo legitimado da “class action” para impedir que escritórios de advocacia se intitulem como falsas associações de consumidores legitimadas para a propositura das ações coletivas, com propósito de angariar clientes, objetivando o ajuizamento de milhares de ações individuais.

 

Estudo e divulgação do custo estimado da equivocada opção da redução de demanda de massa pela via dos dissídios individuais em comparação com o custo de uma ação coletiva (caso “MEGABÔNUS”- UNIBANCO – 40.000 ações em um ano com o custo aproximado de gastos do próprio Judiciário de R$ 8.000.000,00 (oito milhões de reais) com a movimentação de processos considerando despesas com servidores, material de consumo e etc.

 

 Os momentos de crise representam grande oportunidade para refletir sobre avanços e superação das dificuldades e podem exercer efeito positivo na comunidade jurídica para maior reflexão sobre o momento de crise de demanda que o Poder Judiciário enfrenta e busca do caminho mais acertado e seguro que permita uma melhoria da Justiça.

 

   (Flavio Citro Vieira de Mello, Juiz Titular do II Juizado Especial Cível da Capital, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro)

 

 

 Artigo Institucional – Por Um Código de Processo Coletivo pág. 34 – REVISTA FORUM DA AMAERJ – Associação dos Magistrados do Estado do Rio de Janeiro – Ano 8, número 27, out/nov/dez 2010.

 

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Comentado por Paulo Pereira em 1/2/11

Por ocasião da criação do juizado para pequenas causas teve como principal objetivo agilizar os processos que adormecem no judiciário de nosso país por anos e anos. No inicio, funcionou, hoje, estão completamente descaracterizados do objetivo fim – AGILIZAR A DECISÃO JURÍDICA – digo isso, pois procurei um desses orgãos no bairro onde resido, você é obrigado a agir dessa forma, e a 1ª audiencia de reconciliação foi agendada para 23/08/2011, ou seja, 7 meses de espera. Aí está a razão do por que as empresas de prestação de servicos e outras, de imediato negam qualquer reclamação que o cidadão faça. Claro, sabem do tempo que irão ganhar usufruindo da famosa – VAMOS EMPURRAR COM A BARRIGA.

Enfim…ainda temos que ouvir que o Brasil é um país em desenvovimento …….triste né……Mas o Tiririca resolverá tudo isso. Assumiu seu gabinete……Tudo muito triste. Quanta bravata !!!!!!
P.S. – um dia a sociedade aprenderá a votar. E vamos que vamos.

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