Flávio Citro - Direito Eletrônico

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro admite litisconsórcio passivo de várias instituições financeiras credoras do consumidor-autor superendividado para garantir-lhe descontos das prestações dos financiamentos limitados ao valor equivalente a 30% dos rendimentos líquidos

ESTADO DO RIO DE JANEIRO

TRIBUNAL DE JUSTIÇA

5ª CÂMARA CÍVEL

Agravo de Instrumento nº:  2009.002.30311

Agravante:                           Vanda da Costa Oliveira

Agravado:                            Banco BVA e outros

Juiz:                                     Juiz:                                        Dr. Plínio Pinto Coelho Filho

Relator:                                  Des. Cristina Tereza Gaulia

 

 

Ementa: Agravo de instrumento. Superendividamento. Acesso do consumidor superendividado à Justiça. Decisão agravada que determinou a emenda da inicial. Indeferimento da formação de litisconsórcio passivo, ao argumento de que as pretensões são isoladas, os contratos são distintos e foram firmados com pessoas jurídicas diversas. Autora-agravante que pretende a limitação de todos os descontos realizados em seu contracheque a 30% dos seus proventos líquidos. Empréstimos consignados. Lei processual civil que autoriza a cumulação subjetiva de ações nos casos em que haja afinidade de questões, por um ponto comum de fato ou de direito. Inteligência do inciso IV do art. 46 CPC. Litisconsórcio passivo facultativo. Admissibilidade. Prestígio ao princípio da economia processual e à efetividade. Inteligência da combinação dos incisos XXXV, XXXII e LXXVIII do art. 5º CF/88 com art. 4º I CDC e art. 37 CF/88. Pretensão autoral que somente pode ser atingida se todas as instituições financeiras credoras figurarem no pólo passivo. Doze litisconsortes. Matéria de direito, ausência de prejuízo à celeridade e ao direito de defesa das instituições financeiras rés. Limitação a dez litisconsortes por processo que é construção jurisprudencial, e pode ser modificada de acordo com as peculiaridades do caso concreto. Recurso provido.

 

 

ACÓRDÃO

 

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos do agravo de instrumento referido em que são partes as acima indicadas, ACORDAM os Desembargadores da Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, por ______________________, em DAR PROVIMENTO ao apelo, na forma do voto do Relator.

 

 

Rio de Janeiro, 03 de setembro de 2009.

 

 

 

____________________________

Des. Cristina Tereza Gaulia

Relator

RELATÓRIO

 

Trata-se de agravo de instrumento interposto Vanda da Costa Oliveira à decisão da 14ª Vara Cível da capital que, nos autos da ação ordinária ajuizada pela ora agravante em face de Banco BVA, Banco Pine S.A., Banco BMG, Banco Bonsucesso, Banco BGN, Banco Cruzeiro do Sul, Banco Mercantil do Brasil, Banco Panamericano, ASB Financeira, BV Financeira, Lecca Financeira e Banco Fibra S.A., em que aquela objetiva a limitação dos descontos referentes a empréstimos consignados em folha de pagamento celebrados com os réus, em 30% (tinta por cento) dos seus ganhos líquidos.

 

A decisão agravada determinou a emenda à inicial, no prazo de dez dias, pena de indeferimento da mesma, ante a impossibilidade de formação de litisconsórcio passivo. Refira-se seu inteiro teor:

 

“Indefiro a formação do litisconsórcio passivo, uma vez que trata-se de pretensões isoladas, ou seja, contratos distintos firmados com pessoas jurídicas também diversas.

Assim, intime-se a parte autora para regularizar o petitório exordial, no prazo de 10 dias, sob pena de indeferimento da inicial”.

 

Pretende a agravante a concessão de efeito suspensivo à decisão recorrida, na forma do art. 558 CPC e, no mais, requer a reforma desta, ao argumento de que é possível a formação de litisconsórcio passivo no caso concreto; que a hipótese é de cumulação subjetiva, na forma do art. 46 CPC; que a pretensão é única, qual seja, a limitação dos descontos de débitos em folha de pagamento, em 30% dos ganhos líquidos da autora; que tal medida não pode ser alcançada se a agravante tiver que demandar de forma isolada em face dos réus.

 

A decisão de fls. 28/30 concedeu efeito suspensivo à decisão recorrida.

 

O juízo agravado prestou informações à fl. 34.

 

É o relatório.

 

VOTO

 

Assiste razão à agravante, devendo a decisão recorrida ser reformada.

 

Com efeito, a autora-agravante sustentou na inicial de fls. 08/17 ter celebrado diversos contratos de mútuo, com previsão expressa de desconto consignado em folha de pagamento, com diversas instituições financeiras, estas indicadas para figurar no pólo passivo da lide.

 

Tais afirmações restaram comprovadas pelo contracheque de fl. 22, onde constam inúmeras rubricas de descontos em folha de pagamento, realizados pelas várias instituições financeiras indicadas a figurar no pólo passivo da presente demanda.

 

Forçoso reconhecer que a situação jurídica da consumidora-agravante enquadra-se no conceito de superendividamento que, na lição de Cláudia Lima Marques[1], define-se:

 

“pela impossibilidade do devedor-pessoa física, leigo e de boa-fé, pagar suas dívidas de consumo, e a necessidade do Direito prever algum tipo de saída, parcelamento ou prazos de graça, fruto do dever de cooperação e lealdade para evitar a “morte civil” deste “falido” – leigo ou “falido” – civil”.

 

Consumidores superendividados tem procurado de maneira cada vez mais recorrente o Poder Judiciário para a solução de seus conflitos, o que motivou a criação de um Projeto-piloto, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, que objetiva mediar a renegociação das dívidas dos consumidores com todos os seus credores, de forma amigável, de acordo com seu orçamento familiar, de modo a garantir a subsistência básica de sua família, o que também está acontecendo, no Estado do Rio de Janeiro, através de eficiente trabalho desempenhado no balcão do superendividado mantido pelo Nudecon – Núcleo da Defensoria do Consumidor.

 

Infelizmente a iniciativa não atinge maior eficácia por não estar albergada pelo Judiciário.

 

O caso em exame passa pelo acolhimento e garantias da pretensão autoral, de acesso pleno ao Judiciário (art. 5º XXXV CF/88: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), defesa de seus interesses como consumidora, vulnerável (art. 5º XXXII CF/88: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” c.c art. 4º I CDC: “o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”) e, pela efretividade da prestação jurisdicional com eficiência, celeridade e economia processual (art. 37 CF/88: “a administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência …”) c.c art. 5º LXXVIII CF/88: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”).

 

In casu, não há como determinar o desmembramento do feito, já que apenas com a participação de todos os credores do consumidor superendividado, é possível ao magistrado mensurar o montante da dívida, e verificar a melhor maneira de ajudá-lo a saldá-la, parcial e gradativamente, perante os credores, sem, contudo, prejudicar a subsistência do devedor e sua família[2].

 

Consigne-se que a lei processual civil autoriza a cumulação subjetiva de ações nos casos em que haja afinidade de questões, por um ponto comum de fato ou de direito. Refira-se a redação do art. 46, IV CPC:

 

 “Duas ou mais pessoas podem litigar no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando:

(…)

IV – ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito”.

 

Casos como o presente, portanto, admitem a formação de litisconsórcio passivo facultativo, sendo certo que, além de prestigiar o princípio da economia processual, importante salientar que a reunião das ações, neste caso, é imprescindível para a efetividade da demanda, já que se a autora demandasse isoladamente cada um dos réus, jamais conseguiria obter a pretensão formulada no item “a” de fl. 16, qual seja, “a limitação da soma de todos descontos no seu contracheque em 30% dos rendimentos líquidos”.

 

Ressalte-se que a pretensão autoral não é juridicamente impossível, na forma do disposto no art. 6º, V CDC, que permite a intervenção do Estado-Juiz no contrato entre o consumidor e o fornecedor, para garantir a efetiva proteção àquele, nos moldes em que a lei propugna, quando aquele estiver submetido a “prestações desproporcionais” ou “excessivamente onerosas”.

 

Sobre a questão, refiram-se os julgados a seguir colacionados:

 

PROCESSUAL CIVIL. CUMULAÇÃO DE PEDIDOS. RÉUS DISTINTOS. Quando ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato e de direito, conforme previsto no inciso IV do art. 46 do Código de Processo Civil, o autor pode acionar vários réus, ainda se formulados pedidos cumulativos contra réus distintos. (…)”

(STJ. REsp 204611/MG. Relator(a) Ministro CESAR ASFOR ROCHA. QUARTA TURMA. Julgamento: 16/05/2002. Data da Publicação/Fonte DJ 09/09/2002 p. 229
RSTJ vol. 164 p. 369).

 

AGRAVO DE INSTRUMENTOPROCESSUAL LITISCONSÓRCIO PASSIVO – AFINIDADE DE QUESTÕES POR UM PONTO COMUM DE FATO OU DE DIREITO (ARTIGO 46, IV, DO CPC) – REVISÃO DE CONTRATOS DE MÚTUO CONTRA RÉUS DIVERSOS – ADMISSIBILIDADE.Ação proposta em face de duas instituições financeiras, objetivando a revisão de contratos de refinanciamento de dívidas e indenização por dano moral, em razão da não observância do limite de comprometimento da renda do autor, de forma a permitir sua sobrevivência, posto que, efetuados os descontos das dívidas em sua folha de pagamento, restam-lhe apenas R$ 100,00.Decisão que determinou a emenda da inicial, ao fundamento de que a cumulação de pedidos só é permitida em face do mesmo réu e, na espécie, os réus são diversos.O artigo 292 do Código de Processo Civil, que autoriza a cumulação de vários pedidos num único processo, contra o mesmo réu, trata da cumulação objetiva. A cumulação subjetiva está disciplinada no artigo 46, Código de Processo Civil, cujo inciso IV autoriza duas ou mais pessoas a litigarem no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito.Ainda que diversos os contratos e diversos os réus, a semelhança do direito invocado autoriza o litisconsórcio passivo, em homenagem ao princípio da economia processual.Provimento do recurso, para cassar a decisão agravada e determinar o prosseguimento do feito em seus ulteriores termos, como de direito.

(TJRJ. Agravo de Instrumento 2006.002.13656. DES. CASSIA MEDEIROS – Julgamento: 07/11/2006 – DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL).

 

PROCESSUAL CIVIL. Cumulação de pedidos e de partes. Pretensões de desconstituição de alienação a terceiros e de adjudicação compulsória. O fato de inexistir litisconsórcio necessário, isso não exclui a possibilidade de formação de demanda conjunta facultativa. Não configuração de hipótese de recusa do litisconsórcio. E possível a cumulação de pedidos contra réus diversos, ainda que os pedidos formulados contra cada um sejam diferentes. Interpretação literal do caput do art. 292, do diploma processual civil, que não se compadece com o principio da efetividade do processo. Relação de prejudicialidade dos pedidos, de modo que exigir o ajuizamento, em separado, das duas demandas, por mero apego à literal disposição de lei, além de afrontar o princípio da economia processual, desatende aquele outro princípio, mormente porque na hipótese dos autos, de acordo com a decisão agravada, só subsistiria o pedido da pretensão sucessiva, cujo êxito só é possível, se vitorioso o primeiro pedido. Recurso provido.

(TJRJ. Agravo de Instrumento 2004.002.22680. DES. CARLOS EDUARDO PASSOS – Julgamento: 09/03/2005 – DECIMA QUINTA CÂMARA CÍVEL).

 

Por último, sublinhe-se que, em que pese serem doze réus, não é recomendada a limitação do número de litigantes, a teor do parágrafo único do art. 46 CPC[3], pelas razões a seguir expendidas.

 

A uma, porque a matéria é de direito, sendo certo que a rápida solução do litígio não será comprometida, tampouco haverá dificuldade de defesa, não havendo que se falar em violação ao art. 5º, LXXVIII CF/88[4].

 

A duas, porque, como dito, é necessário o somatório de todas as dívidas contraídas pela autora nas diversas instituições financeiras, para que possam ser, s.m.j., os descontos limitados ao valor equivalente a 30% dos rendimentos líquidos desta, ou a fim de ser buscada uma outra solução para a situação de superendividamento que vive a consumidora.

 

Ademais, o entendimento que limita em dez o número de litisconsortes por processo é jurisprudencial, sendo perfeitamente possível o alargamento ou estreitamento desse número, dependendo do caso concreto.

 

Isso posto, voto pelo PROVIMENTO ao recurso para reformar a decisão recorrida, admitindo-se a formação do litisconsórcio passivo, prosseguindo-se o regular processamento do feito em primeira instância.  

 

 

 

______________________________

Des. Cristina Tereza Gaulia

Relator

 

[1] in “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”, 4ª. ed, RT, 2002, p. 1053.

[2] Disponível em: http://www.superendividamento.org.br/. Coord. Juíza Dra. Clarissa Costa Lima.

[3] CPC, art. 46, parágrafo único: “O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão”.

[4] “Art. 5º (…)

LXXVIII – a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”


Faça seu comentário.

Site publicado em 04/05/2009
www.flaviocitro.com.br - siteflaviocitro.com.br