“O SUPERENDIVIDAMENTO E A TUTELA DO CONSUMIDOR”
FLÁVIO CITRO VIEIRA DE MELLO E PAULO MAXIMILIAN
Palestra: O SUPERENDIVIDAMENTO E A TUTELA DO CONSUMIDOR
Local: Palácio da Justiça / Emerj
Abertura: Des. José Carlos Maldonado de Carvalho
Palestrante: Dra. Marcela Oliboni
Data: 07/11/2011 (10h às 12h).
“A vingar a tese da recorrente, da prevalência da dignidade da pessoa humana, em face do “superendividamento”, estar-se-á institucionalizando o calote consentido, ou seja, bastará a pessoa se endividar, deliberadamente, além das suas possibilidades de pagamento, adquirindo bens de consumo de forma desarrazoada e, depois, alegar, pura e simplesmente, aviltada na sua dignidade, suprimindo, então, os descontos dos empréstimos consignados na sua folha de pagamento.” (STJ – 3ª Turma, AgRg. na Medida Cautelar 16.128–RS, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 04.02.2010)
A PROTEÇÃO DO SOBREENDIVIDADO NO BRASIL
À LUZ DO DIREITO COMPARADO
1. INTRODUÇÃO
O fenômeno social do sobreendividamento no Brasil não tem recebido dos poderes constituídos – Legislativo, Executivo e Judiciário – a necessária atenção, deixando ao desamparo milhões de consumidores aflitos que não têm possibilidade de pagar suas dívidas atuais e futuras.
Os órgãos de defesa do consumidor e os sítios da internet que acolhem reclamações dos consumidores acumulam depoimentos impressionantes de pessoas desesperadas, multiendividadas, que acumulam dívidas e sofrem restrições de crédito, suspensão de serviços públicos essenciais, enfrentam problemas de impontualidade das mensalidades escolares e administram de forma caótica as cobranças dos credores.
Grande parte dos sobreendividados é vítima de um “acidente da vida”, em razão do desemprego, de doença, de morte de um arrimo de família, de separação ou divórcio, de sinistros que levam à incapacidade total ou parcial, causas que privam a família de parte significativa da fonte de renda, impedindo o pagamento das dívidas e despesas fixas mensais do orçamento doméstico.
O acesso ao crédito fácil, a falta de informação e de educação para o consumo, a publicidade agressiva, o desejo de consumo de produtos e serviços oferecidos através de uma publicidade sugestiva, fazem com que os consumidores se endividem progressivamente até deixarem de ter capacidade de honrar seus compromissos, sendo “lançados” no sobrendividamento, o que significa a “impossibilidade global do devedor pessoa-física, leigo e de boa-fé, de pagar todas as suas dívidas atuais e futuras de consumo” (Marques, Claudia Lima, 2006).[1]
O presente trabalho analisa o grave fenômeno social do sobreendividamento do consumidor e empresta um enfoque multidisciplinar que visa alcançar todas as formas de tutela e remédios ao alcance dos consumidores para alívio dos sobreendividados, cuja proteção não se limita à existência ou não de Lei específica de tratamento do sobreendividamento. O trabalho exalta a importância de se ampliar o espectro de proteção do consumidor de boa-fé que sofre com a indigna e humilhante situação do sobreendividado, que ofusca a sua cidadania (Gaulia, Cristina, 1999):
A incapacidade de lidar o cidadão com suas dívidas, a redução de economias individuais a zero ou a patamares negativos, a inserção do consumidor nos cadastros de inadimplentes, o corte de serviços essenciais, a dependência/submissão do indivíduo ao gerente de banco, a impossibilidade de estabelecer prioridades por falta absoluta de dinheiro e crédito, a falta de opções para o pagamento parcelado dos débitos salvo os apresentados pelas instituições financeiras, conduzem a uma retração da cidadania e à uma inequívoca situação de indignidade. [2]
O sistema de proteção da cidadania e dignidade do sobreendividado no Brasil é desordenado e periférico, não alcançando o núcleo principal que deve assegurar a elaboração extrajudicial de um plano de renegociação e pagamento das dívidas. Tampouco garante acesso à Justiça que permita a exoneração de parte do passivo restante, para o recomeço e alívio da vida financeira do sobreendividado, livrando-o das dívidas (fresh start).
O trabalho analisa o inexpressivo uso de ações de cobrança e de execuções de fornecedores contra os devedores insolventes multiendividados e o quadro normativo que protege o sobreendividado no Brasil, com acentuado grau de intervenção do Estado, na área da defesa do consumidor e do cidadão. Os mecanismos periféricos de defesa do devedor impressionam pela variedade e profundidade, já que existem diversas formas de tutela, que são extremamente importantes para preservação da dignidade do consumidor sobreendividado, se não vejamos:
1) Proibição da penhora de salários, prevista no art.º 649 do CPC;
2) A proibição de penhora do bem de família, plasmada na Lei 8009/90;
3) Os devedores só podem ser mantidos no “ficheiro” de inadimplentes por cinco anos, nos termos do art. 43 § 1º, da Lei 8078/90;
4) Os devedores estão protegidos de eventuais cobranças abusivas e constrangedoras, pelos art. 42, § único, e art. 71, do Código de Defesa do Consumidor;
5) Vedação de débito superior a 30% do salário ou da pensão do funcionário público no crédito consignado, segundo a Lei 10.820, de 17 de Dezembro de 2003;
6) A ação revisional do art.º 6o, V, do Código de Defesa do Consumidor para modificação das cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais ou excessivamente onerosas;
7) O processo de insolvência civil individual, regulado no Código de Processo Civil (art.ºs 748 a 785 do CPCB);
8) Os núcleos de atendimento dos sobreendividados dos Procons e das Defensorias Públicas.
Pretende-se mostrar que os consumidores brasileiros, por seu turno, não se socorrem de processos de insolvência civil individual, previstos no Código de Processo Civil (art.ºs 748 a 785 do CPCB), porque, para além da vergonha de se considerarem falidos, os sobreendividados se sentem protegidos pelo sistema defensivo periférico que se enuncia supra. Ademais, o processo brasileiro de falência individual equivale a uma execução de iniciativa do próprio devedor, com vencimento antecipado das obrigações vincendas e liquidação do seu patrimônio, sem qualquer possibilidade de exoneração de parte do passivo.
O trabalho retrata o quadro singular de inércia das instituições de crédito, das sociedades financeiras e dos fornecedores de crédito direto ao consumidor que, diante do inadimplemento do devedor, não ajuízam ações de cobrança e de execuções contra os devedores insolventes, muito embora a lei processual lhes garanta concurso universal para execução do multiendividado (art.º 751, III, do CPC).
Os agentes econômicos não são nem criteriosos nem cautelosos na prévia análise da capacidade de endividamento do consumidor. Os créditos são concedidos de forma irresponsável, sem garantia, nem lastro patrimonial do consumidor, o que torna desinteressante para o credor uma aventura judicial contra o devedor sobreendividado, em busca da recuperação judicial do crédito, mormente diante do quadro protetivo acima descrito. Portanto, se esse sistema desordenado de crédito eleva o risco para o financiador, a taxa de juros atinge níveis estratosféricos.
Muito embora o Brasil ainda não possua legislação específica que regule o sobreendividamento, a dignidade do sobreendividado está mais protegida do que em países dotados de legislação específica, mas no que se refere à possibilidade de livrá-lo das dívidas, o sistema brasileiro é falho e o consumidor sobreendividado fica impedido de lograr alívio definitivo com a exoneração do passivo remanescente.
Buscam-se, na doutrina estrangeira, parâmetros de proteção legal do sobreendividado, elegendo-se o modelo francês como perfeitamente compatível com o sistema protetivo extrajudicial e judicial do consumidor no Brasil, para então se discutir a necessidade de ampliação dessa “proteção periférica”, com a adoção de uma Lei específica que sirva e se adapte, propugnando-se especificamente a doutrina do “fresh start” para garantir ao consumidor sobreendividado uma alternativa prioritariamente extrajudicial de formulação de um plano de pagamento e de exoneração do passivo restante, em prazo razoável não superior a cinco anos.
2. DO CRÉDITO, ENDIVIMENTO E SOBREENDIVIDAMENTO
A existência de milhares de sobreendividados e a dificuldade de prevenção e tratamento do sobreendividamento não autorizam o observador a presumir que o crédito ao consumidor seja nocivo.
O endividamento é um processo de antecipação de rendimentos gerador de acesso ao consumo de bens e serviços e, no contexto de crescimento econômico e estabilidade do emprego, é altamente positivo para a economia. Não se pode demonizar o crédito. O crédito concede a oportunidade de se obter a posse ou propriedade de um bem ou usufruir de um serviço, sem dispor, de imediato, de rendimento necessário para suportar essa aquisição. O endividamento gerado pelo crédito garante o acesso aos bens de consumo e assegura qualidade de vida, dá acesso à habitação (investimento), gera negócios e receita fiscal e fomenta a produção e os serviços. Se o crédito significa dispor imediatamente de rendimento que não se possui, implica igualmente no comprometimento da renda futura.
A doutrina conceitua distintamente o sobreendividamento ativo e passivo como o descumprimento com culpa do consumidor ou sem culpa/imprevisibilidade (desemprego, doença, divórcio, decesso, desastres).
A ampliação do conceito de sobreendividamento para alcançar inclusive consumidores que não contraíram eventual crédito é hoje exigência do amadurecimento dos estudos sociológicos e jurídicos da crise mundial e conseqüência do abalo em relação às crenças de auto-regulamentação e auto-suficiência do mercado financeiro e de crédito.
A doutrina se apega à distinção entre sobreendividamento passivo e ativo e sublinha a predominância das causas externas que conduzem à insolvência (Costa, Geraldo, 2006) [3]. A diferenciação da situação do consumidor que sofreu um drama pessoal gerador da insolvência, daquele que pode ser considerado culpado pelo acúmulo inconsiderado de dívidas inadimplidas, perde significância a cada dia, na medida em que aproximadamente 70% dos consumidores são endividados passivos (Marques, Claudia, 2006) [4].
A análise dos casos concretos e das histórias pessoais dos consumidores sobreendividados revela que muitos nem sequer contraíram crédito além das suas possibilidades e não têm condições de arcar com os encargos e as despesas mensais de seu próprio orçamento doméstico, frente aos serviços públicos essenciais de água, luz, gás, de moradia, escola e para sobrevivência da família (Frade, Catarina e Lopes, Fernanda)[5].
A doutrina age com correção ao realçar a observância da boa-fé pelo consumidor sobreendividado, traduzida em ações demonstrativas do seu ‘animus solvendi’, que merece apoio e crédito para reorganizar sua vida financeira e melhor planejar seu orçamento doméstico (Marimpietri, Flavia, 2009)[6].
O papel do fornecedor, nesse realístico contexto de “fenômeno social”, assume maior relevo, na medida em que muitos créditos são concedidos de forma irresponsável, sem qualquer comprovação de renda pelos candidatos ao crédito (Cavallazzi, Rosângela, 1996)[7], e sem que o fornecedor tenha realizado uma análise criteriosa da capacidade de endividamento do consumidor (Costa Mariana, 2010)[8], devendo o empreendedor ambicioso se tornar corresponsável pela insolvabilidade do consumidor.
Há necessidade de se investigar a parcela de responsabilidade do financiador do crédito, para fazê-lo responder também pela insolvência decorrente do crédito concedido de forma irresponsável.
Portanto, a prevenção do sobreendividamento exige o protagonismo do Estado na fiscalização das entidades financeiras e de crédito, como garantidor da livre e consciente decisão do consumidor, que tem direito à informação prestada de forma correta e suficiente. O dever de aconselhamento obriga o fornecedor a orientar a ação do consumidor, adaptando a informação à capacidade de compreensão do destinatário. O fornecedor de crédito deve se inteirar da situação do consumidor, analisando suas necessidades e emitindo opinião sobre a maneira mais adequada de satisfazê-las. O empreendedor deve se certificar que o consumidor compreendeu a solução proposta e apropriada às necessidades do outro contratante (Boucard, François apud Lima, Clarissa e Bertoncello, Karen)[9].
O agente econômico não é fornecedor de dinheiro como produto. A obrigação do fornecedor de crédito é a de prestação de serviços especializados na concessão do crédito. Portanto, a qualidade do serviço deve ser aferida pela acuidade na análise da capacidade de endividamento do consumidor, na garantia de idoneidade e confiança em relação àquele que toma o empréstimo, o crédito irresponsável deve ser duramente combatido:
A sociedade atual, do consumo em massa, da contratação em massa, prescinde de garantias, confiança, reflexão. A oferta e a publicidade são persuasivas, e se bastam por si mesmas, para um e outro lados da contratação: “o Sr. só vai começar a pagar daqui a três meses”, “a gente faz consignação em folha, a Sra. nem vai sentir que está pagando”, ou, “até o fim do ano, eu liquido a fatura”. Como qualquer produto à venda no mercado, o crédito precisa, pois, da OFERTA e da PUBLICIDADE. E justamente a partir da explosão de ofertas, e da massiva publicidade sobre o crédito fácil e o sonho de deixar de ser um excluído, é que nasce o grande perigo para o homo consumericus. Atordoado pela oferta abundante e pela publicidade muitas vezes enganosa, até por omissão, e quase sempre abusiva, o consumidor se deixa atrair para esse novo mundo do qual ele quer tanto fazer parte: o mundo da felicidade líquida, usando expressão de Zygmunt Bauman. [10].
A concessão do crédito ao consumo exige do mutuante responsável a verificação criteriosa e prévia da solvabilidade do consumidor[11], além da obrigação de aconselhamento (Pereira, Wellerson, 1996):
É de notar a decisão da Corte de Cassação que, constatando a negligência de um fornecedor de crédito imobiliário pela ausência de avaliação da capacidade de reembolso do consumidor, estabeleceu pela primeira vez em 27.06.1995, sob os aludidos fundamentos jurídicos, a responsabilidade da instituição de crédito pelo agravamento da situação financeira do consumidor, cujo montante indenizatório teria o mesmo valor do capital emprestado. [12]
A crise hipotecária da América do Norte é exemplo didático da concessão de crédito de forma irresponsável e da necessidade de corresponsabilização do credor hipotecário pela quebra dos contratos de financiamento imobiliário, por inadimplência involuntária do mutuário.
Essa equação foi revelada pela denominada “crise do subprime”, em que consumidores da América do Norte realizaram a segunda ou terceira hipoteca sobre o imóvel próprio ou financiado, desvalorizado com a crise econômica e foram surpreendidos por dívidas superiores ao valor venal do imóvel. Estes consumidores não podem ser exclusivamente responsabilizados pela insolvabilidade de suas dívidas, porque foram iludidos pelos fornecedores que, como especialistas nesse segmento de mercado, deveriam ter tido a cautela de prever o inevitável colapso do sistema piramidal de créditos impagáveis, sem suficiente garantia real, causando a ruína e o desalojamento de milhares de famílias que perderam seus lares, por acreditarem em um cenário ideal e irreal, só imaginado pelos mutuantes. A conduta do credor hipotecário, em tais casos, o torna responsável pelo crédito concedido sem observância dos deveres da informação e aconselhamento.
No particular é esclarecedor o magnífico trabalho da União Internacional de Consumidores que iniciou nos Estados Unidos um projeto especial para gravar em vídeo histórias de indivíduos sobreendividados como resultado do inadimplemento das hipotecas:
Estas são histórias pessoais de vários indivíduos cujas experiências refletem as muitas maneiras nas quais hipotecas abusivas foram contratadas por uma enorme quantidade de indivíduos, afetando diversas comunidades e a economia americana. Em 2008, 2,3 milhões de imóveis foram alvo de execuções de hipotecas nos Estados Unidos. Houve um aumento de 81% por cento em relação a 2007 e aumento de 225% em relação a 2006. Para além das estatísticas, estas são pessoas reais, as famílias reais lutando para manter o bem mais precioso que possuem. Sob pressão para fazer face às despesas para pagar suas hipotecas e alimentarem seus filhos, estas são as histórias de pessoas orientadas por práticas de empréstimos predatórios e forçadas a tomarem decisões difíceis. [13]
3. DA PROTEÇÃO AO SOBREENDIVIDADO NO BRASIL
Os sítios da internet que acolhem reclamações dos consumidores acumulam depoimentos impressionantes de consumidores multiendividados, desesperados com dívidas atuais e futuras, sem crédito, com serviços públicos essenciais suspensos por falta de pagamento, enfrentando problemas de impontualidade das mensalidades escolares, quadro de caótica administração das cobranças dos credores.
O consumidor sobreendividado tem sua cidadania hipotecada aos credores e sua dignidade ofuscada pela pressão por eles exercida, equação que descortina o grave fenômeno social do sobreendividamento, exigindo urgente resposta por parte dos poderes constituídos – Legislativo, Executivo e Judiciário – para que emprestem enfoque multidisciplinar ao sobreendividamento, buscando formatar um sistema eficaz que reúna todas as formas de tutela e remédios disponíveis aos consumidores, cuja proteção não se limita à existência ou não de Lei específica de tratamento do sobreendividamento.
3.1 DO INEXPRESSIVO USO DE AÇÕES DE COBRANÇA E DE EXECUÇÕES CONTRA OS DEVEDORES INSOLVENTES
A ausência de legislação específica protetiva do sobreendividado no Brasil, até a presente data, retrata um quadro curioso em que os fornecedores, na sua grande maioria, concedem créditos de forma irresponsável e não ajuízam ações de cobranças e de execuções contra os devedores insolventes.
Uma parte dos sobreendividados, no momento da concessão do crédito, já constava do cadastro de inadimplentes (ficheiro de crédito) e, portanto, já se encontrava em processo de incumprimento. Além disso, o processo judicial de cobrança tem alto custo a ser enfrentado pelos credores (Lima, Clarissa, Bertoncello, Karen, Dall’agnol, Maria, 2009) [14], o que explica o desinteresse pela cobrança e execução judicial do devedor mutiendividado, muito embora a Lei processual lhes garanta o concurso universal (art.º 751, III, do CPC).
Nesses casos, os credores têm consciência de que não havendo prévia e criteriosa análise da capacidade de endividamento do consumidor, já que o crédito foi concedido de forma irresponsável, o sobreendividamento decorre do acúmulo de juros extorsivos que fazem com que os devedores, sem garantia, nem lastro patrimonial, não possuam condições de saldar suas dívidas.
3.2 DA PROIBIÇÃO DA PENHORA DE SALÁRIOS
Como consectário da garantia constitucional à dignidade da pessoa humana, prevista no inciso III, art.º 1.º, da Constituição Federal, e em observância à natureza alimentar do salário, o sistema jurídico protege os endividados com a impenhorabilidade de tais proventos:
Art.º 649. São absolutamente impenhoráveis: … …
IV – os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos, o soldo e os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia; VII – as pensões, as tenças ou os montepios, percebidos dos cofres públicos, ou de institutos de previdência, bem como os provenientes de liberalidade de terceiro, quando destinados ao sustento do devedor ou da sua família; VIII – os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, observado o disposto no § 3o deste artigo; (Redação dada pela Lei nº 11.382, de 2006). § 1o A impenhorabilidade não é oponível à cobrança do crédito concedido para a aquisição do próprio bem. (Incluído pela Lei n.º 11.382, de 2006).
Trata-se da mais importante tutela dos direitos fundamentais do cidadão, para preservação de uma condição digna de vida, para assegurar a sua subsistência e de seu agregado familiar, garantindo alimentação, habitação, higiene, transporte, educação e demais exigências mínimas.
3.3 DA VEDAÇÃO DA PENHORA DO BEM DE FAMÍLIA
O rol das garantias legais e processuais do devedor brasileiro conta ainda com a impenhorabilidade do bem de família, prevista na Lei 8009/90.
O consumidor endividado goza da garantia de preservação do imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à exceção do crédito hipotecário privilegiado, nos termos da Lei n.º 8.009, de 29 de março de 1990, que dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família:
Art.º 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados. Art.º 2.º Excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. Parágrafo único. No caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo. Art.º 3.º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza…
A proteção também tem fundamento na dignidade da pessoa humana, postulado constitucional inscrito no art.º 5.º da Constituição Federal de 1988, de inviolabilidade da propriedade privada, colocando em primeiro plano a preservação da moradia do devedor e de sua família e em plano secundário o direito do credor decorrente do crédito inadimplido.
3.4 DA CADUCIDADE DO REGISTRO NEGATIVO NO “FICHEIRO” DE INADIMPLENTES APÓS CINCO ANOS
Muito embora os endividados não gozem de crédito durante o período de incumprimento, em razão de figurarem no ficheiro de inadimplentes, a restrição de crédito só pode ser mantida por 5 (cinco) anos, nos termos do art.º 43 § 1.º da Lei 8078/90:
Art.º 43 – O consumidor, sem prejuízo do disposto no Art.º 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes. § 1.º – Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a 5 (cinco) anos.
A manutenção do registro desabonador no ficheiro tem o objetivo de proteção do mercado de crédito, possibilitando que os agentes econômicos consultem a lista de inadimplentes, evitando assim a concessão crédito de forma irresponsável, para candidatos que não reúnam condições de honrar as obrigações assumidas.
Portanto, o Código do Consumidor estabelece cinco anos como prazo limite de restrição de crédito em ficheiro público negativo, reputando como período máximo necessário para a finalidade restritiva a que se destina.
3.5 DA PROTEÇÃO À DIGNIDADE DO SOBREENDIVIDADO CONTRA COBRANÇAS ABUSIVAS E CONSTRANGEDORAS
O Código de Defesa do Consumidor protege o sobreendividado de cobranças abusivas e constrangedoras, nos termos dos art.ºs 42, § único, e 71:
Art.º 42 – Na cobrança de débitos o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável. Lei 8078/90
Art.º 71. Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer: Pena – Detenção de três meses a um ano e multa.
Nesse contexto mais amplo de rediscussão do sistema de crédito responsável, a dignidade do consumidor sobreendividado deve ser protegida e preservada preventivamente, já que ele é vítima de um sistema liberal de crédito, injusto e cruel, segundo regras de mercado impostas por segmentos econômicos poderosíssimos, que se valem de marketing agressivo e de técnicas comerciais egoísticas e desleais, visando exclusivamente o lucro ilimitado do empreendedor econômico, sem freios inibitórios éticos e morais.
As impagáveis dívidas acumuladas, em tais casos, não podem ser cobradas indefinidamente e de forma constrangedora, devendo o direito positivo proteger a dignidade do consumidor endividado, sob pena de se frustrar o papel imparcial do Estado, garantidor do direito da personalidade do cidadão, que se alberga nas constituições modernas.
O consumidor sobreendividado, ainda que sob a forma ativa, mas de boa-fé, deve ter a sua dignidade protegida contra cobranças constrangedoras e que ameacem ou perturbem a sua paz, ou tranqüilidade de seu agregado familiar. As Leis e Códigos de Defesa do Consumidor e as legislações de sobreendividamento devem conter regras que inibam os fornecedores de realizar cobranças constrangedoras, a exemplo da proteção já existente no Brasil [15].
A América do Norte, em que pese seu pioneirismo no acesso ao crédito e o vanguardismo na criação dos “cartões de crédito”, não nos serve como exemplo de sistema garantidor da dignidade do consumidor sobreendividado, pois não oferece um modelo protetivo compatível com a tradição constitucional brasileira de defesa da dignidade do cidadão, já que admite cobrança extrajudicial por carta hostil com pedido de pagamento, os credores procuram outros métodos para recuperar o dinheiro devido, incluindo telefonemas, visitas pessoais, ameaças de ação judicial e as comunicações com a entidade patronal, vizinhos, clientes ou fornecedores e não é raro o cometimento de abusos por parte do credor ou seu agente. A comunicação ao empregador que o trabalhador não pagou as suas dívidas é utilizada como tática de cobrança, através de pressão indireta sobre o empregado. Os empregadores, por sua vez, querem evitar o incômodo e os custos de penhora de salários. Há casos de constatação de invasão de privacidade através de chamadas para os vizinhos do devedor, a publicação do nome do devedor e o montante da dívida em um jornal e um aviso sobre o endividamento no estabelecimento do credor. Só quando essas comunicações são “extremas e escandalosas” e resultam em sofrimento emocional, o devedor pode se legitimar a uma indenização com base na teoria da imposição intencional de sofrimento mental (Epstein, David, 2005).[16]
A cobrança que assume contornos humilhantes é tema de controvérsia nos Estados Unidos da América,[17] como nos dá notícia a matéria publicada do jornal brasileiro O Globo, em 17/03/2010, de onde se extrai que existem sistemas de imobilização de veículos usados para alertar motoristas de atrasos nos pagamentos de seus carros:
EUA – Ataque de hacker deixa mais de 100 carros sem funcionar no Texas. Um cyber invasor deixou mais de 100 automóveis sem funcionar ou com as buzinas fora de controle em Austin, Texas, ao tomar o controle de um sistema de imobilização de veículos usado para alertar motoristas de atrasos nos pagamentos de seus carros. Omar Ramos-Lopez, de 20 anos, foi preso pela Unidade de Crime de Alta Tecnologia da Polícia de Austin. Ele foi demitido da Texas Auto Center no mês passado e teria pregado a peça para se vingar de seu ex-empregador. “Alguns clientes nos ligavam reclamando de buzinas tocando no meio da noite. A única opção que eles tinham era remover a bateria” – disse Martin Garcia, gerente da Texas Auto Center, à revista Wired. O serviço de imobilização remota começou a ser utilizado nos EUA há cerca de 10 anos. Ele ainda causa polêmica por ser considerado humilhante e prejudicar devedores que estejam em uma situação de emergência. Pelo sistema, chamado Webtech Plus, uma pequena caixa preta é instalada no carro. Ela responde a comandos de um website central, enviados por uma rede sem-fio. O vendedor pode desativar o sistema de ignição do carro ou ligar a buzina para lembrar pagamentos atrasados. As reclamações de clientes da Texas Auto Center começaram na última semana de fevereiro e pararam quando a senha do Webtech Plus foi modificada. A polícia então foi atrás dos registros de acesso e rastreou o endereço IP do sabotador até a conexão de Ramos-Lopez. A conta dele havia sido fechada, mas ele tinha informações de acesso de outro funcionário. Pela molecagem, Ramos-Lopez vai responder por invasão de sistema de computador. [18]
O fornecedor, no segmento de mercado financeiro e de crédito, precisa de compreender que o dever de colaboração com o sobreendividado persiste mesmo após o inadimplemento, razão pela qual não se justifica a cobrança constrangedora ou humilhante. A conduta do credor deve se dirigir para a mediação extrajudicial, com vistas ao refinanciamento e novo parcelamento do débito, sob pena de o empreendedor assumir o risco inerente à álea de cobrança judicial da dívida ou de sofrer inibição de atos constritivos caso o consumidor se valha de um processo de insolvência.
A importância do tema justificaria mais atenção da doutrina especializada pela proteção ao endividado contra cobranças constrangedoras, como ferramenta efetiva e eficiente de proteção permanente do consumidor.
3.5 DA LIMITAÇÃO DE DESCONTO MENSAL A 30% DO SALÁRIO OU DA PENSÃO DO FUNCIONÁRIO PÚBLICO NO CRÉDITO CONSIGNADO
No crédito consignado, o pagamento das parcelas do mútuo tem a garantia de desconto mensal do financiamento diretamente em folha de pagamento do salário do servidor público.
A Lei 10.820, de 17 de Dezembro de 2003, dispõe sobre o limite máximo de comprometimento do salário, fixando-o em 30%, ainda que existam sucessivos créditos de uma mesma entidade financeira ou de várias e a jurisprudência também estendeu esse limite para os mútuos bancários com débito em conta corrente. [19]
3.6 DA AÇÃO REVISIONAL PARA MODIFICAÇÃO DAS CLÁUSULAS QUE ESTABELEÇAM PRESTAÇÕES DESPROPORCIONAIS OU EXCESSIVAMENTE ONEROSAS
O Poder Judiciário tem, na Ação Revisional, do art.º 6.o, V, do Código de Defesa do Consumidor, papel de relevo para intervir no contrato e promover a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou excessivamente onerosas.
Trata-se da teoria da quebra da base jurídica do negócio. Na realidade socioeconômica brasileira, o endividamento do consumidor tem como uma de suas causas “um contrato desequilibrado em sua economia interna” (Pereira, Wellerson, 2006).
Portanto, nos casos de desequilíbrio econômico e onerosidade excessiva, justifica-se a intervenção do juiz no conteúdo contratual em defesa do sobreendividado, especialmente ante a inexistência de lei específica que o proteja.
3.7 DA OBSOLESCÊNCIA DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA CIVIL INDIVIDUAL REGULADO NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
O sobreendividamento no Brasil, diante da anomia, fenômeno brasileiro onde inexiste legislação específica protetiva do sobreendividado, é singular porque o consumidor, por sua vez, também não se prevalece do processo de insolvência civil individual previsto no Código de Processo Civil Brasileiro:
Art.º 748 – Dá-se a insolvência toda vez que as dívidas excederem a importância dos bens do devedor.
Art. 750 – Presume-se a insolvência quando:
I – o devedor não possuir outros bens livres e desembaraçados para nomear à penhora;
II – forem arrestados bens do devedor, com fundamento no Art.º 813, I, II e III.
Art.º 751 – A declaração de insolvência do devedor produz:
I – o vencimento antecipado das suas dívidas;
II – a arrecadação de todos os seus bens suscetíveis de penhora, quer os atuais, quer os adquiridos no curso do processo;
III – a execução por concurso universal dos seus credores.
Art.º 752 – Declarada a insolvência, o devedor perde o direito de administrar os seus bens e de dispor deles, até a liquidação total da massa.
O processo de insolvência civil previsto no ordenamento processual está obsoleto, o legislador modernizou a norma comercial equivalente, criando o processo de recuperação de empresas da Lei 11.101/2005, mas nada previu sobre a insolvência das pessoas naturais.
A insolvência civil de pessoas naturais permanece no estatuto processual de 1973, e muito embora contenha previsão de extinção das obrigações em cinco anos após o encerramento do processo de insolvência, na forma dos art.ºs 777 a 779 do CPC, ela se assemelha a uma execução por iniciativa do devedor, com vencimento antecipado das obrigações e liquidação total do passivo, não permitindo a formulação de um plano de pagamento pelo devedor e tampouco autorizando a exoneração do passivo remanescente.
Outro fator que inibe o requerimento de insolvência civil individual decorre de elemento psicológico, ou seja, a vergonha do sobreendividado brasileiro de expor sua condição de falido perante a sociedade, impedindo a busca de uma solução definitiva para o alívio de suas dívidas. De fato, tal fenômeno é retratado nos Estados Unidos onde a experiência de requerimento de falência é tratada como um caso vergonhoso:
O ajuizamento do processo de insolvência (bancarrota) continua a ser uma afirmação de evidente fracasso. A insolvência é uma questão submetida a registro público e que pode aparecer em um relatório de crédito por dez anos. Alguns jornais locais imprimem listas dos nomes dos devedores. Alguns empresários e entidades patronais não empregam ou contratam indivíduos que tenham sido devedores. Embora seja possível a obtenção de crédito, se torna mais gravoso (score). Várias inscrições e candidaturas para emprego contêm perguntas se o candidato se valeu de processo de insolvência individual (falência). [20]
É compreensível que o sobreendividado se acomode na “pseudo zona de conforto” criada pela equação decorrente do inexpressivo uso de ações de cobranças e de execuções contra os devedores insolventes em cotejo com as normas protetivas, consideradas como difusas, já analisadas. Por outro lado, essa “confortável” apatia, em nada beneficia sua situação de devedor, vez que suas dívidas permanecem, o que impossibilita a exoneração de parte do passivo restante, para o recomeço e alívio de sua vida financeira, livrando-o das dívidas (fresh start) e sua reintegração plena na vida econômica.
3.8 DOS NÚCLEOS DE ATENDIMENTO AOS SUPERENDIVIDADOS
O tratamento do sobreendividado no Brasil possui tímida rede de política pública de defesa e proteção do consumidor endividado, que inclui entidades governamentais de defesa do consumidor, como as Defensorias Públicas dos Estados e os Procons, instituições que estão se organizando para ajudar a orientar os já endividados[21].
O pioneiro Projeto-Piloto de Tratamento de Situações de Superendividamento do Consumidor foi instalado no Rio Grande do Sul, por iniciativa das magistradas Clarissa Costa de Lima e Karen Rick Danilevicz Bertoncello, para dar apoio ao consumidor na recuperação do crédito, educar para o consumo sustentável e uso do crédito consciente, bem como orientar a elaboração de orçamento doméstico e mediar a negociação das dívidas junto aos credores envolvidos. [22]
O segundo Projeto de Núcleo de Defesa do Consumidor Superendividado foi implantado pelos Defensores Públicos Lincoln Jamellas e Marcella L. de C. Pessanha Oliboni, no Rio de Janeiro, na Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (NUDECON) e incluído no Programa “Boas Práticas do Judiciário” 15 – Parte 2 do CNJ. [23]
A Fundação PROCON de São Paulo implantou o Projeto chamado “Núcleo de Superendividamento” que objetiva orientar, informar e conscientizar os consumidores além de auxiliar na negociação de suas dívidas junto aos credores envolvidos. [24]
No Paraná, o Projeto de Tratamento de Superendividados foi instalado em 29 de abril de 2010, pela Juíza Sandra Bauermann, no 1.º JEC de Curitiba, em parceria com a Escola da Magistratura do TJPR, responsável pela capacitação e disponibilização de alunos do curso de Preparação à Magistratura para atuarem como conciliadores voluntários e disponibilização das salas de audiências da EMAP para realização das audiências de renegociação/conciliação.[25]
4. DA BUSCA DO MELHOR MODELO PARA O SISTEMA DE PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR BRASILEIRO
4.1 DA REGULAMENTAÇÃO DO SOBREENDIVIDAMENTO COM PREDOMINÂNCIA DE TRATAMENTO EXTRAJUDICIAL
Não é possível a simples importação de um modelo de insolvência civil, para implantá-lo em sistema diverso. Em países com avançados sistemas judiciais, uma abordagem judicial é viável, em nações, porém, sem um sistema judicial bem desenvolvido ou sem um bom funcionamento do sistema judicial, a falência do consumidor precisa ser dirigida para uma espécie de órgão administrativo (Gross, Karen, 1999)[26]. O modelo deve ser adaptado para o contexto do sistema legal protetivo do país que pretende implantar uma legislação específica de sobreendividamento. Ele necessita de se amoldar na sociedade em que está sendo adotado, sendo desenvolvido para trabalhar a partir de uma perspectiva prática que precisa de levar em consideração a disponibilidade ou não de uma estrutura extrajudicial de tratamento que capacite e treine conselheiros e mediadores de sobreendividamento e principalmente a sensibilidade e capacidade do Poder Judiciário de absorver essa nova demanda de processos de insolvência.
Os modelos existentes para tratamento do sobreendividamento são o da “fresh start policy” e o “sistema da reeducação”. O primeiro trata o sobreendividamento como um risco associado à expansão do mercado financeiro e, por isso, aposta na socialização do risco de desenvolvimento do crédito, concebendo uma responsabilidade limitada para o consumidor. Os bens do devedor são liquidados para o pagamento das dívidas possíveis, restando perdoadas as demais. O segundo está fundado na idéia de que o consumidor falhou e necessita de ser reeducado, sendo obrigado a pagar suas dívidas com patrimônio presente e rendimento futuro por meio de um plano de pagamento acordado com os credores (Lima, Clarissa, Bertoncello, Karen, Dall’agnol, Maria, 2009)[27].
A regulamentação do sobreendividamento deve enfrentar o problema social e estabelecer uma ponte entre o legal e o social. O tratamento do sobreendividamento deve ficar a cargo dos conselheiros dos endividados de forma profissional e independente, ao passo que a lei deve facilitar e fortalecer os acordos de dívida voluntariamente negociados (Huls, Nick, 1999):
O modelo ideal é alcançado quando a lei prescreve os requisitos básicos de um acordo de dívida. O devedor tem de colocar certa parte de sua renda futura à disposição dos seus credores durante um período máximo de quatro anos. Além disso, o devedor deve vender os seus bens não-isentos. Esta abordagem (uma combinação do Capítulo 7 e 13 do American Bankruptcy Code) é respeitada pelo direito francês e no direito alemão e holandês. A combinação do produto da liquidação e do rendimento disponível futuro distribuído entre os credores. Esta combinação de liquidação e de um plano de reorganização tem duas vantagens: impede o requerimento de falência por parte dos consumidores e visa proporcionar rendimentos substanciais para pagamento dos credores, que se aproveitam de todos os recursos do devedor em conta. Em contrapartida do comprometimento de sua renda futura e seus bens não isentos, com base em um plano aprovado, o devedor recebe o perdão da dívida remanescente após período que não deverá exceder quatro anos”.
Como defendem também Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, do Observatório do Endividamento dos Consumidores da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, é desejável
que o tribunal funcione, em regra, como instância de recurso e não como instância principal, por duas ordens de razões. Uma diz respeito à maior formalidade, distanciamento e estigmatização que decorre de uma ida a tribunal, aspectos que não são tão perceptíveis em procedimentos conciliatórios ou mediados que, por isso, favorecem a procura do consenso e a manutenção de uma relação entre as partes. Outra decorre do facto de os tribunais, designadamente os tribunais ordinários, não estarem nem sensibilizados, nem sobretudo apetrechados para conseguirem dar uma resposta não apenas justa, mas também célere e, assim, eficaz. A título de exemplo, refira-se que, na Noruega, onde o sistema criado para tratar o sobreendividamento é judicial, a duração média de quatro meses para este processo foi considerada excessiva, tendo-se definido como meta a atingir os três meses. Nos nossos Tribunais de Comércio, que são tribunais especializados, o processo de insolvência das pessoas singulares nunca demorava, em média, menos de um ano. [28]
4.2 DO MODELO DE FALÊNCIA INDIVIDUAL NA FRANÇA
O sistema francês de tratamento do sobreendividamento, criado pela Lei Neiertz, foi incorporado no Código do Consumo (Code de la Consommation) e protege a pessoa natural (singular), de boa-fé, em relação às dívidas não profissionais, exige que a má-fé seja alegada e provada pelo credor (nem o juiz a pode argüir de ofício), evita a utilização do Poder Judiciário (juiz da execução) e prioriza a conciliação administrativa em sede extrajudicial, perante Comissões Governamentais de Sobreendividamento, onde o processo se inicia e pode acabar sem intervenção judicial, para obtenção de um plano de pagamento parcelado das dívidas (à exceção de dívidas de alimentos, débitos fiscais e parafiscais) de até 8 anos, deixando o endividado com recursos equivalentes ao mínimo necessário (Paisant, Gilles):
Mais especificamente, dois novos procedimentos foram criados: o ‘acordo amigável’ e ‘direcionamento para o tribunal civil’. O amigável tende a buscar uma reconciliação entre o devedor e seus principais credores. Este processo ocorre antes de uma Comissão Administrativa de Sobreendividamento, na Comissão Departamental. Estas comissões – atualmente 117 – foram criadas por razões de economia processual, para evitar o julgamento pelos juízes. Note-se que, hoje, em França, há o mesmo número de juízes de há um século atrás … e todos estão sobrecarregados. É mais barato criar comissões do que contratar novos juízes: o orçamento da Justiça, em França, representa apenas 1,5% do orçamento nacional. .. Estas comissões consistem na representação departamental do Banco de França. … Se o acordo for celebrado por intermédio da Comissão, é apresentado como um contrato que deve ser cumprido. Se não houver conciliação, poderá solicitar o exame do juiz do Tribunal Cível. O juiz competente é o juiz de instância. Cabe a ele pronunciar-se sobre as medidas para restaurar a situação patrimonial do devedor entre todas as expressamente previstas por lei. Pode-se começar a recorrer ao juiz para desfrutar de uma tutela judicial civil, mas, neste caso, deve-se, sem exceção, transferir o processo para a comissão tentar uma solução amigável. Esses dois procedimentos foram um êxito imediato. Entre 1 de março de 1990 e o final desse ano, foram iniciados 90 000 pedidos nas diversas comissões. [29]
4.3 DO MODELO DE FALÊNCIA INDIVIDUAL NOS EUA
O Código da Insolvência Civil nos EUA faculta aos sobreendividados o direito de conquistar alívio para as suas dívidas, optando pela liquidação do patrimônio não-garantido, que excede o limite de isenção de cada Estado, para pagamento dos credores ou pelo comprometimento de renda futura. Os devedores têm direito irrenunciável de escolher entre essas duas alternativas previstas nos Capítulos 7 e 13.
A solução prevista no Capítulo 7 não envolve a apresentação de um plano de pagamento, cabendo ao administrador da falência reunir e vender os bens não-isentos do devedor e distribuir o produto arrecadado para pagar aos credores. A parte dos bens do devedor sujeitos a penhoras e hipotecas estará afetada exclusivamente a estes credores privilegiados. Além disso, o Código de Falências permite ao devedor manter certos bens de valor inferior à isenção do Estado, mas o administrador liquidará os bens remanescentes do devedor. Assim, os devedores que optarem pelo Capítulo 7 correm o risco de perda da propriedade não-garantida de valor superior à isenção.
A previsão do Capítulo 13 adota o comprometimento da renda futura, com preservação do patrimônio, que exceda a isenção do Estado. A virtude do Capítulo 13 para o devedor particular é a abertura da oportunidade de salvar seu imóvel da execução hipotecária, através de um plano de pagamento com grave comprometimento da renda futura.
A falência individual tem o propósito de quitar as dívidas do sobreendividado de boa-fé, com exoneração do passivo restante, para lhe garantir o “fresh start“, não incluindo dívidas de alimentos, impostos, dívidas de cunho educacional ou empréstimos feitos ou garantidos por unidade governamental, as dívidas decorrentes de lesão intencional e maliciosa do devedor, débitos por morte ou danos pessoais causados pelo devedor conduzindo veículo embriagado e as dívidas criminais. O devedor continuará a ser responsável por esses tipos de dívidas não quitadas no Capítulo 7.
A insolvência do Capítulo 7 suspende automaticamente a maioria das ações de cobrança contra o devedor e impede constrição de bens do devedor apenas por um curto período de tempo. Enquanto a suspensão vigorar, os credores não podem iniciar ou continuar ações, penhorar o salário ou realizar cobranças telefônicas exigindo pagamentos. O secretário de falência intima todos os credores cujos nomes e endereços são fornecidos pelo devedor.
4.4 DO MODELO DE FALÊNCIA INDIVIDUAL EM PORTUGAL
Em Portugal, o art.º 27, do Decreto-Lei n.º 132/93, disciplinava a insolvência civil, situação que se assemelhava à do Brasil, até que adveio, no ordenamento jurídico português, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
Este diploma implantou o sistema misto de reestruturação dos débitos dos sobreendividados pelo plano de pagamento, combinado com a doutrina norte-americana do “fresh start” e submete a arbitramento judicial, sob condições rigorosas, a decisão liminar de exoneração do passivo restante após cinco anos, caso os créditos da insolvência não tenham sido integralmente satisfeitos.
O CIRE condiciona a exoneração do passivo restante à prova de boa-fé, nos Capítulos I e II, do Título XII, art.ºs 235 a 248, adotando o elemento subjetivo sujeito ao livre convencimento judicial, para conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas.
O art.º 238 estabelece, na alínea d) do nº 1, outra condição que determina o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante: deve ser indeferido o pedido se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores”.
As duas condições – de boa-fé e tempestividade do ajuizamento da insolvência a partir de um termo a quo de conceito indefinido – são aplicadas com rigor pelo Poder Judicial português que parece nada sensibilizado para a gravidade e dimensão do “fenômeno social”, restringindo o número de sobreendividados que alcançam a exoneração do passivo restante.
O plano de pagamento, previsto nos art.ºs 249 a 263 , é submetido aos credores e pode conter moratórias, remissões, descontos e traduz vantagens para ambos, na medida em que acelera a solução do sobreendividamento, pela via da autocomposição.
A obtenção da exoneração do passivo restante exige que, após o processo de insolvência, o devedor permaneça, por cinco anos (período de cessão), adstrito ao pagamento dos débitos não integralmente satisfeitos no processo, poupando aos credores toda a tramitação de um processo de apreensão e liquidação de bens, se abstendo da prática de atos que maculem seu nome e reputação para permitir, no termo dos cinco anos, a reintegração plena do devedor na vida econômica.
Para aprimorar o sistema, logrando atingir medidas mais práticas para tratamento do sobreendividamento, Portugal criou o “Gabinete de Apoio às Pessoas Sobreendividadas” (art.ºs 592 e 593 do CIRE), como órgão auxiliar do juiz. com o papel de diligenciar informações e mediar um plano de reestruturação do passivo para fins de acordo (art.º 618 ).
4.5 DA PREFERÊNCIA PELO MODELO FRANCÊS E SUA ADAPTAÇÃO AO SISTEMA DE DEFESA DO CONSUMIDOR BRASILEIRO
O sobreendividamento é um fenômeno social para o qual a lei brasileira não previu ainda uma resposta adequada, mas há necessidade urgente de introdução em nosso ordenamento de um sistema de proteção ao consumidor sobreendividado para se “evitar a morte do homo economicus”, (Lima Marques, Cláudia apud Carpena, Heloisa e Cavallazzi, Rosângela) [30] e preservar a dignidade do consumidor de crédito.
A defesa do sobreendividado exige a construção de um sistema protetivo que se amolde de forma realística à estrutura da sociedade em que está sendo adotado e deve ser desenvolvido para enfrentar as vicissitudes práticas da rede de defesa do consumidor disponível.
Se o Poder Judiciário se encontra assoberbado de processos, como é a realidade brasileira, em que uma eventual pletora de processos de insolvência agravaria a caótica situação de falta de uma infra-estrutura judiciária e intensificaria a demora na prestação do serviço judicial, não é conveniente nem oportuna a importação de um modelo que concentre no Poder Judiciário o tratamento do sobreendividamento, sob pena de se vulnerar os postulados de eficiência e celeridade do serviço jurisdicional.
Está em jogo interesse relevante do Estado-juiz para fins de observância do princípio constitucional da eficiência da função pública, para observância de mandamento constitucional inserido pela Emenda Constitucional n.º 19/98, novo paradigma para mudança no perfil de administração pública que devemos interpretar como demanda de uma justiça eficiente, pelo caput do art.º 37, da Constituição Federal: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados e do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)”.
A preocupação atende especialmente ao novo postulado inserido pela Emenda Constitucional n.º 45, de julgamento dos processos em prazo razoável, previsto no inciso LXXVIII, do art.º 5.º da CF/88, ”a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantem a celeridade de sua tramitação.”
Em países com sistema judicial relativamente eficiente como nos EUA, a priorização da solução judicial é justificável, como ocorre com o Bankruptcy Code. Já em nações sem um sistema judicial bem desenvolvido ou sem um bom funcionamento do sistema judicial, a falência do consumidor deve ser prioritariamente extrajudicial, como no modelo francês. No caso brasileiro, especialmente ante a existência de uma rede nacional de Procons, órgãos administrativos estaduais de Defesa do Consumidor, coordenados nacionalmente pelo Ministério da Justiça, a opção deve ser orientada para a priorização da solução extrajudicial preconizada pelo modelo francês.
No Brasil está em fase de elaboração um Anteprojeto de Lei, elaborado pela Professora Cláudia Lima Marques, que sugere a adoção de uma fase de conciliação inspirada no projeto-piloto com a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que prevê uma audiência voluntária, em que o devedor propõe um plano de pagamento com a concordância do conjunto de seus credores.
O plano de pagamento assegura o mínimo existencial (o restre à vivre da lei francesa), em torno dos 30% do rendimento do consumidor. No caso de descumprimento do acordo, com força executiva, haverá intervenção judicial.
No acordo são negociados prazos mais longos e descontos da dívida e é celebrada uma cláusula de paz entre o devedor e seus credores. O devedor se obriga a não contrair novas dívidas para não piorar a sua situação. E os fornecedores retiram o nome do devedor dos ficheiros de crédito, após o primeiro pagamento.
A priorização da solução extrajudicial foi inspirada no projeto-piloto lançado pelas juízas do Rio Grande do Sul, Clarissa Costa de Lima e Karen Bertoncello, que alcança a transação em aproximadamente 60 % dos casos.
O anteprojeto inspirado predominantemente pela legislação de sobreendividamento de França e dos Estados Unidos prevê que, malogrado o acordo extrajudicial, o juiz poderá definir um plano de pagamento, com a remoção de cláusulas abusivas e sanções mais fortes, como eliminação dos juros remuneratórios, obrigando a um acordo nos casos de não comparecimento dos credores.
5. DA NECESSIDADE DE AMPLIAÇÃO DO SISTEMA DE PROTEÇÃO
5.1 DA NECESSIDADE DE ADOÇÃO DOS FICHEIROS POSITIVOS DE CRÉDITO
O cadastro positivo consiste num banco de dados com informações sobre financiamentos celebrados e adimplidos, pagamentos em dia e atrasos quitados que retratarão o histórico de informações de crédito e de relações comerciais dos consumidores com outorga de crédito ou financiamento, elemento que, aliado ao cadastro negativo de aponte dos inadimplentes, permitirá ao financiador realizar criteriosa análise de crédito, com possibilidade de investigar a capacidade real de endividamento do consumidor candidato a crédito, a fim de prevenir e evitar a inadimplência, o endividamento e o sobreendividamento.
No Brasil, o Projeto de Lei do Senado 263, de 2004, que na Câmara dos Deputados tramitou como PL 405, de 2007, foi substituído pelo PL 85/2009 (substitutivo ao PL n.º 836/2003, número de origem da Câmara) e pretende criar o ‘cadastro positivo’ nos Sistemas de Proteção ao Crédito, acrescentando ao art.º 43 do Código de Defesa do Consumidor autorização para adoção dos bancos de dados e cadastro positivo de consumidores, condicionado o registro à autorização expressa do consumidor. Espera-se com isto a queda dos juros (spread) em razão da segurança do crédito alcançada em razão do histórico (score) do consumidor, até porque o financiador passará a conhecer a capacidade de endividamento do candidato, em razão do número de financiamentos de que ele dispõe, bem como se aguarda a ampliação do crédito, especialmente alcançando pessoas que não têm como comprovar a sua renda, mas são pontuais nos seus pagamentos.
Segundo Catarina Sarmento e Castro,[31]
Os ficheiros de crédito são um instrumento indispensável de prevenção do sobreendividamento do consumidor, ao ajudar à definição do risco por parte do credor …. A criação de tratamentos de dados relativos aos devedores numa relação creditícia tem uma inegável importância para a vida econômica.
A doutrina estrangeira aponta para a utilização dos bancos de dados como uma das soluções a auxiliar a prevenção do sobreendividamento.
No “Parecer do Observatório do Endividamento dos Consumidores sobre a proposta de Diretiva sobre o Crédito ao Consumidor”, de 31/10/2002, se colhe que: “só os ficheiros positivos permitem aos credores um conhecimento mais aprofundado da capacidade econômica de um consumidor que lhes solicita crédito”. [32]
5.2 DA NECESSIDADE DE AMPLIAÇÃO DAS GARANTIAS PARA OS CRÉDITOS AO CONSUMO
O estudo do problema do endividamento excessivo e a análise das formas de tratamento do sobreendividamento descortinam uma questão fundamental acerca da ausência de garantias que amparem o crédito.
A inexistência de garantia para o financiamento da compra e venda de bens de consumo duradouros desfavorece a questão do crédito responsável na medida em que, diante do inadimplemento, tanto o devedor como o credor passam a raciocinar apenas em termos de “solvabilidade do crédito”, enquanto o devedor permanece usufruindo o bem adquirido.
A experiência norte-americana de recuperação extrajudicial (reintegração de posse) do bem financiado, por um agente de recuperação (Repossession Man), pode ser um caminho interessante para vincular o financiamento ao bem adquirido e para baixar o custo dos juros pela redução do tempo e dos gastos judiciais na hipótese de inadimplemento do financiamento, na medida em que a reintegração de posse é extrajudicial e terceirizada (outsourcing) e protagonizada pela parte que tenha direito de propriedade do móvel ou imóvel em questão (vendedor ou financiador) e que recupera a posse do bem sem necessidade de se valer de processo judicial.
6. DAS CONCLUSÕES
O consumidor sobreendividado de boa-fé, tendo demonstrado animus solvendi, precisa de ajuda, orientação e aconselhamento para reorganizar a vida financeira e seu orçamento doméstico, em busca de alívio para a insolvência.
O modelo ideal para tratamento do sobreendividamento deve atender aos requisitos básicos de um sistema misto que priorize o acordo de dívida em sede extrajudicial, em que o devedor liquide parte de seu patrimônio ou coloque parte de sua renda futura para pagamento dos credores durante um período máximo pré-estabelecido, não superior a cinco anos.
A priorização da solução extrajudicial tem a vantagem de evitar o requerimento de falência por parte dos consumidores e preservar rendimentos para pagamento dos credores. Em contrapartida do comprometimento de renda futura o sobreendividado pode preservar parte de seus bens que não necessitem ser liquidados, com base num plano aprovado judicialmente. O devedor recebe o perdão da dívida remanescente após o período de 5 (cinco) anos.
A regulamentação do sobreendividamento, a ser adotada no Brasil, deve eleger o modelo francês, combinando a prevenção e o tratamento prioritariamente em sede extrajudicial, como construção de uma ponte entre o legal e o social. O tratamento do sobreendividamento deve privilegiar a solução extrajudicial conciliada, razão pela qual os conselheiros devem ser recrutados e capacitados para, de forma profissional e independente, perseguir a mediação de acordos de dívida voluntariamente negociados.
Questões de dívidas devem ser mantidas fora dos tribunais, tanto quanto possível. O Poder Judiciário deve ser poupado a inúmeros processos individuais que abarrotam os tribunais especialmente diante da equação prática e reveladora de diversos credores cujos créditos individuais não podem ser satisfeitos devido à situação de insolvência irremediável.
Fato é que, mesmo diante da inexistência de legislação específica, o consumidor sobreendividado brasileiro é bem protegido pelas garantias periféricas apresentadas no item 3. Diante de tal afirmação, conclui-se que a Lei de Sobreendividamento, em vias de elaboração no Brasil, vem ao encontro da regulamentação já existente, para ampliar a proteção ao sobreendividado, possibilitando desta forma, um verdadeiro “começar de novo” e reformatar esse sistema desordenado de crédito que, ao elevar o risco para o financiador, mantém a taxa de juros a níveis estratosféricos, excessivos, exorbitantes, dir-se-ia, obscenos.
7. BIBLIOGRAFIA
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Castro, Catarina Sarmento e, “Os Ficheiros de Crédito e a Protecção de Dados Pessoais”, Boletim da Faculdade de Direito de Coinbra, Coimbra, 2002, vol. LXXVIII.
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Castro, Catarina Sarmento e, “Estudos de Direito do Consumidor”, Revista do Centro de Direito do Consumo da Universidade de Coimbra, n.º 4, 2002.
Fialho, António José, “Estudos de Direito do Consumidor”, Revista do Centro de Direito do Consumo da Universidade de Coimbra, n.º 7, 2005.
[1] “Contratos no Código de Defesa do Consumidor”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
[2] “O Abuso de Direito na Concessão de Crédito – O Risco do Empreendimento Financeiro na Era do Hiperconsumo”, Revista da EMERJ, número 47/2009, vol. 12, 1999.
[3] In Direitos do Consumidor Endividado, Sobreendividamento e Crédito, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 247
[4] “Sugestões para uma Lei sobre o tratamento do Sobreendividamento”, in Direitos do Consumidor Endividado, Sobreendividamento e Crédito, Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 302
[5] Observatório do Endividamento dos Consumidores, Portugal, http://oec.ces.uc.pt/pdf/oec_noticias_6.pdf, pág. 02
[6] Consumismo e Sobreendividamento www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=606
[7] No Rio de Janeiro, foi observado que somente em 39% dos casos o contrato foi precedido da solicitação de comprovação de rendimentos dos entrevistados, in Direitos do Consumidor Endividado: Sobreendividamento e Crédito, Coord. Cláudia Lima Marques, RT 1996, S.P., p. 392
[8] Não podemos deixar de recordar um processo judicial de execução para pagamento de dívida e que continha, como documento comprovativo de residência entregue pelo devedor quando do pedido de concessão de crédito, a notificação da EDP a indicar o corte de luz por falta de pagamento. “Do crédito ao consumo e do Sobreendividamento Activo” http://aeiou.visao.pt/do-credito-ao-consumo-e-do-sobreendividamento-activo=f545046
[9] Les obligations d’information et de consei! du banquier, Aix - Marseille: Presses Universitaires - Faculté de Droit et de Science Politique, 2002. in Direitos do Consumidor Endividado: Sobreendividamento e Crédito, Coord. Cláudia Lima Marques, RT 2006, S.P., p. 199
[10] Gaulia, Cristina Tereza, “O Abuso de Direito na Concessão de Crédito – O Risco do Empreendimento Financeiro na Era do Hiperconsumo”, Revista da EMERJ, número 47/2009, vol. 12, 1999.
[11] STJ – Supremo Tribunal de Justiça – 07/05/2009: “O Banco tem o dever de acautelamento dos interesses do cliente”.
[12] Pereira, Wellerson, (in Direitos do Consumidor Endividado: Sobreendividamento e Crédito, Coord. Cláudia Lima Marques, RT 1996, S.P., p. 179).
[14] “Revista Portuguesa de Direito do Consumo”, n.º 59, 2009, p. 197.
[15] Processo:20020710069479 http://www.jusbrasil.com.br/noticias/4009/empresa-condenada-a-indenizar-cliente-por-cobranca-constrangedora
[16] Epstein, David G., Falência e legislação relacionada, Edition, sétima, Thompson / Oeste, E.U.A., 2005.
[17] No filme “Confessions of a Shopaholic” (título traduzido “Os delírios de consumo de Becky Bloom”), a protagonista Rebecca Bloomwood (Islã Fisher) é uma consumidora inveterada atolada em dívidas em seus cartões de crédito e que tem no seu encalço um cobrador exigente, que a persegue por todos os lados e em todos os momentos, não medindo esforços para receber o montante devido. Ela tem um grande sonho: trabalhar em uma das mais badaladas revistas de moda de Nova York. Mas, por ironia do destino, ela apenas chega à porta da sonhada revista, e em lugar de ficar na editoria de moda, ela é contratada para dar dicas de economia doméstica, alertar as consumidoras para as armadilhas dos cartões de crédito e como organizar as finanças.
[18] Publicada em 17/03/2010 in “O Globo” http://oglobo.globo.com/tecnologia/mat/2010/03/17/ataque-de-hacker-deixa-mais-de-100-carros-sem-funcionar-no-texas-916092433.asp
[19]http://srv85.tjrj.jus.br/ConsultaDocGedWeb/faces/ResourceLoader.jsp?idDocumento=00037A02052E4C333C3CDD9B32FFADD163C169C402384449 http://srv85.tjrj.jus.br/ConsultaDocGedWeb/faces/ResourceLoader.jsp?idDocumento=00037A02052E4C333C3CDD9B32FFADD163C169C402384449
[20] “ Karen Gross, no Colóquio Internacional de Endividamento dos Consumidores, de maio de 1999.
[26] No Colóquio Internacional de Endividamento dos Consumidores, maio de 1999, Revista Notas Econômicas, número 14, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (tradução livre).
[27] “Revista Portuguesa de Direito do Consumo”, n.º 59, 2009, p. 184.
[28] Regular o sobreendividamento - Maria Manuel Leitão Marques e Catarina Frade, do Observatório do Endividamento dos Consumidores Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra http://www.dgpj.mj.pt/sections/informacao-e-eventos/anexos/sections/informacao-e-eventos/anexos/prof-doutora-maria/downloadFile/file/MMLM.pdf?nocache=1210675423.37
[29] Paisant, Gilles, “Él Tratamento Del Sobreendeudamento de los Consumidores en Derecho Francés”, “Estudos de Direito do Consumidor”, Revista do Centro de Direito do Consumo da Universidade de Coimbra, n.º 3, 2001, p. 71.
[30] In Direitos do Consumidor Endividado: Sobreendividamento e Crédito, Coord. Cláudia Lima Marques, RT 2006, S.P., p. 338.
[31] “Os Ficheiros de Crédito e a Protecção de Dados Pessoais”, Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 2002, vol. LXXVIII, p. 475/511.
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